terça-feira, março 31, 2009

Canela

É a última vez que passa pelo corredor. O elevador ainda tenta dar-lhe a chance de voltar. Não volta. Os passos ensaiam alguma dança. Pela escada. Não volta. Ali está. A rua amanhecendo. O elevador pela última vez abre, insiste e ela não vê. Procura forças dentro da bolsa. Encontra um batom. Canela. Tira um lenço de papel. E não volta.

segunda-feira, março 30, 2009

Vestido rodado que a mãe fizera para a ocasião. As palmas embalavam a música e Viridiana girava com graça. Enquanto o mundo misturava as cores à sua volta, com luzes artificiais e a fogueira, via o sorriso orgulhoso do seu par. Rapaz perfumado e camisa abotoada até a altura do peito.
Do balcão, Casimiro observa.
A mãe da moça observa.
O pai a moça observa.
O dono da mercearia enche o copo de Casimiro. Ele estala os dedos da mão esquerda. Vira o copo com a direita. Não tira os olhos da dança. Viridiana puxa a fila dos pares. Parece saltitar. Música alta. Casimiro levanta. Quem o conhece acompanha cada um dos passos cambaleantes que dá. O cachorro, deitado na calçada, barriga cheia de comer os restos do lixo, leva um susto. Casimiro quase pisa na patinha dianteira, pega seu caminho, vai para casa. O cachorro late. Vê a silhueta diminuir a cada passo. Late. Vira a última lata de lixo, saca um qualquer coisa embrulhado e corre atrás do moço.
Leva um resto da noite de lembrança para o dia seguinte.

terça-feira, março 24, 2009

Pedro Nascimento. É um bom sujeito. Quase não fala. Quase não come. Quase não se movimenta no apertado espaço reservado para ele. Divide apartamento com o peixe dourado. Pedro Nascimento. Está em pé, inclinado para frente. Olha o aquário retangular. Vê a si mesmo no reflexo do vidro. Sem os braços, só cauda. Flutua e não fecha os olhos. Vai de um extremo a outro do retângulo. Os movimentos são fáceis, a água tem boa temperatura. Olha pelo vidro o apartamento pequeno. Dá um impulso. Qualquer dia volta para lá.

segunda-feira, março 23, 2009

Passo

Um passo adiante e estaria dentro da sala. Recuou e decidiu tomar um café. Ele estava esperando por horas a idéia lhe aparecer. Tantas e tantas vezes havia acontecido assim. Entrava na sala, sentava-se diante da tela do computador e começava a escrever. Colocou o pó na cafeteira italiana. Esperava a água borbulhar e tomar para si o aroma e o gosto do pó. Já tinha lido o jornal, já tinha visto a notícia da tv. Estava sem paciência. Precisava daquele momento solitário diante do computador. Precisava escrever. Precisava sentir-se vivo. Que lhe restava da vida senão aquilo? Nenhuma idéia. Nada. Uma preguiça tomou conta dos dedos, da cabeça, dos ombros. Estava mesmo tão pouco vivo. Apagou o fogo. Abriu a geladeira, pegou a cerveja. Mais um dia sem almoço, sem fome. Abriu a garrafinha. Sentou-se. Nada que pudesse fazer. Nada em que quisesse pensar. Ultimamente não conseguia sequer esperar a cerveja gelar o suficiente. Desta vez fora prevenido. De um dia a outro gelando. Saboreou. Segurou firme a cabeça apoiando os cotovelos sobre a mesa. Não tinha ali dentro mais nada que pudesse escrever. Não havia mais nada que pudesse sentir. Nada para lembrar. Um borrão preto na memória. Uma fumaça cinza nos sentidos. Coração vazio, mãos vazias. Nem o gosto estranho da dor. Nada. Sozinho e preso o tempo todo dentro de si.

domingo, março 22, 2009

Le soleil

Puxou a carta do baralho com certa cerimônia. Laura notou as unhas roídas da mulher. Deu uma olhada rápida para suas próprias mãos. Um pouco cansadas. Esmalte claro. A marca da antiga aliança. Sol. Era uma boa mensagem. A mulher explicou-lhe o significado. Laura olhou novamente para as unhas roídas da mulher, mais uma carta. Morte. Era como se aquelas unhas mal feitas e com esmalte gasto a tirassem de perto dos astros e da intuição de cartomante. Laura imaginou-a longe do baralho. Ansiedade e expectativa. Roia as unhas tentando acalmar-se. Uma mulher. Esmalte vermelho sem as pontas.
Pagou e agradeceu. Antes de sair trocaram forte abraço. Pegou o ônibus de volta para casa. Sol e Morte já não lhe diziam mais grande coisa.

sábado, março 21, 2009

Outono

É a primeira vez que escrevo um blog.
Imagino que o outono seja uma boa época para se iniciar algo dessa natureza. Talvez seja a luz, as nuvens, o sopro frio do vento. Não sei, algo no outono faz-me pensar melhor.

Espero que escrever aqui seja como tomar um café. Detenho-me, pensando na vida, nas vidas, imaginando as histórias que passam nas calçadas enquanto olho da janela e mexo meu café.