terça-feira, abril 28, 2009

A voz dela

Por força da voz dela, abriu a garrafa de vinho. Ele adora aquele vinil. Noites quentes, noites frias (ainda que prefira as frias) são sempre as melhores noites quando ela canta para ele. Chega de trabalho, chega de ler e reler textos dos outros. Chega de ouvir o que os outros têm a dizer. Eles não significam mais nada, há muito tempo. Vale apenas aquela voz grave que chega a seus ouvidos. E a gravidade daquilo que diz, quase sempre, entram com tanta força que o faz abrir uma garrafa de alguma bebida. Não é sempre que ela vem. Sabe como são essas mulheres, elas cantam, não é todo dia. Vale dizer apenas que quando ela vem e chega com a voz nos ouvidos dele... não há mundo que gire nem tempo que passe. Há o som de sua voz naquele vinil rodando em lugar da terra.

segunda-feira, abril 20, 2009

Sismólogo

O chão tremia sob seus pés. Não o tempo todo. Algumas vezes. Não tinha nenhuma regra, não era de modo previsível nem sistemático. Acontecia assim. Estava vivendo a vida que lhe cabia, fazia tudo para que ela fosse a mais normal quanto possível. Então, sem aviso prévio, sentia os tremores vindos do centro da terra. Era como se debaixo da crosta e das camadas terrestres algo desse errado e tudo ficasse em movimento. Isso durava alguns segundos. Nunca chegava a minuto. A primeira vez que se lembra de ter acontecido, ainda pequeno, estava na rua com a mãe. Certamente havia tido outras vezes, não sabe. Imagina que sim, afinal a mãe, ali ao seu lado, estava preparada para segurar firme em suas mãos, calmamente, para não deixar que se apavorasse na frente de todo mundo. Uma senhora que passava pela calçada perguntou o que o garoto tinha. A mãe explicou. Senhora rezou um padre-nosso. Disse que o diabo se mexia sob os pés da criança. Ele esmagava o infeliz. A mãe não deu atenção. Levou-o embora.
O apelido de sismólogo veio na escola. As crianças esperavam ansiosas, podia acontecer a qualquer momento. Às vezes levava semanas, às vezes era mais freqüente. Alguns se deitavam no chão, outros seguravam em sua cabeça. Ninguém sentia nada. Demorou a conseguir controlar o pavor e disfarçar os tremores sob os pés. Mas, mesmo assim, apelido acompanhou-o por anos. Sismólogo.
Em sua cabeça, compunha a história de outro jeito.
Via-se num futuro não muito distante, andando pelas ruas de uma grande cidade. De repente, o tremor acontecia. Abaixava-se no chão, colocava a palma das mãos sobre a terra e sentiria novamente algo mexer-se. Dirigia-se, então, a um prédio muito alto, salas amplas e brancas, falaria com o chefe daquele pessoal todo e relataria o que havia sentido. O homem, com sérias feições, ouviria atentamente. Dar-lhe-ia crédito, afinal, o garoto estava prevendo a tragédia, há anos agendada para a ocasião.
Não conseguiu nunca terminar a história. Ainda sente o tremor. Fricciona as mãos e controla-se. Silencia os pensamentos. Lembra-se de quando era garoto: aguardava que, nalgum momento, certamente no momento exato, soubesse exatamente o que fazer.

domingo, abril 12, 2009

Irmã

Alguma estranha insegurança tornava-se visível quando alternava a ponta dos pés no chão. Sentada à mesa, Valentina esperava a irmã entrar pela porta do restaurante. Tocava de leve a ponta dos pés no assoalho de madeira. Um, depois o outro. Dava leves tapinhas nos joelhos como se cantasse mentalmente alguma canção antiga.
O restaurante era modesto. Queria a toda força ser uma cantina, detalhes das paredes em verde e vermelho, toalha quadriculada. Esbarrava na decoração de um botequim. Entre isto e aquilo, Valentina tomava suco de laranja com pó de guaraná. A irmã demorava a chegar, sempre atrasada. A chuva não esperaria o fim do almoço - nuvens cinzas, vento úmido. A qualquer momento. Não lhe restava outra coisa a fazer. Tocava a ponta dos pés no chão. Pensava na notícia que a irmã traria. Ela estava alegre ao telefone. Valentina sempre desconfiava. A irmã iria rir depois e recomendar algum floral em gotas, calmante natural ou chá de algum mato exótico. A irmã era assim. Valentina não cedia e continuava batucando levemente nos joelhos em descompasso com a ponta dos pés. Se fumasse, disfarçaria a insegurança. A irmã fuma. Parece esvair-se em fumaça. Sempre leve como a cinza do cigarro.
Viviane entra sacudindo o casaco e o cabelo, tem as mãos ágeis. Encosta guarda-chuvas no canto da parede e abre os braços. Valentina toca os pés inteiros no chão, como se estivessem ali plantados para sempre. Aguarda o encontro da irmã.
O vento gelado percorre todo o restaurante. Viviane abraça Valentina fortemente, cheira à chuva, a frio, a inverno de um país desconhecido. Dá leves tapinhas nas costas da irmã. Valentina ouve-a dizer: "bom ver você".

sábado, abril 11, 2009

Barulho

Tem uma luz no alto do prédio que pisca tentando alguma comunicação. Paulo não vê nada mais a sua volta. Sente apertado o estômago, fecha a janela e vai para a cama tentar dormir. Tem trabalho pela manhã. Tem conta para pagar, deverá sair mais cedo, passará no caixa eletrônico.
Levanta novamente e vai à janela. Olha mais um pouco. Nunca há silêncio em suas noites. Sempre tem alguém passando na rua, sempre tem um vizinho acordado falando alto. Sempre tem alguma coisa acontecendo o tempo todo. Não tem nada com isso. Apenas olha o barulho, olha as luzes que estão apagadas. As acesas, ignora. Detém-se nas apagadas. Um pouco de inveja daqueles que dormem. Um pouco de vontade de estar em alguma daquelas casas que aparentam ser calmas, inofensivas. Dentro de seu apartamento não tem luz nenhuma acesa. Somente os olhos e a cabeça não se apagam em definitivo. Volta para a cama e tenta mais uma vez. Tem trabalho pela manhã. Tem conta para pagar, deverá sair mais cedo, passará no caixa eletrônico.