quinta-feira, maio 28, 2009

Lembrou-se de que gostava de sentar-se na beira do rio. Havia uma leve ribanceira, logo quando as águas faziam certo contorno para a direita, antes de seguirem seu percurso cortando toda a cidade. Sentava-se ali. Ficava apenas a olhar o rio. Quando criança, era caminho da escola. Tantas vezes chegara atrasado, correndo, língua de fora. A inspetora quase fechando o enorme portão azul. Passava rápido, feito filme de super herói. Ouvia o grito da mulher já bem longe. “da próxima vez, não entra mais!” Houve uma vez que fez o inverso. Ao sair da escola, passou por lá. Isso era raro, já que saía da aula cheio de fome, imaginando o que a mãe havia feito no almoço. Sempre corria feito vento de volta pra casa. Mas naquele dia, parou pra ver o rio. Sentou-se ali. Estava apenas a olhar o rio. Perdeu noção de tempo, a mãe já estava enlouquecida de tanto imaginar desgraça. Abraçou o filho, deu-lhe um puxão de orelha, um beijo no rosto e foi esquentar a comida para o moleque desnaturado.
Quando voltou à cidade dos pais, anos depois, faculdade terminada, andava meio sem ter pra onde ir, próximo de uma pequena ponte que ligava o bairro ao centro da cidade. Deu-se conta do rio. Foi até a ribanceira, como antigamente. Lembrou-se devagar do caminho. Tirou os sapatos, sentou-se na mesma ribanceira. Olhou pra dentro da água. Não é preciso dizer que não viu o garoto ali refletido. Que não reconheceu o cabelo, nem os olhos de criança. Ele sabia que era essa a sensação que teria naquele momento. Ele estava olhando mesmo para si, sem a memória de outrora. Sem a paciência de outrora. Sem ser o menino de outrora. A vontade era só de ficar só. A olhar o rio. Brincar de imaginar como seria dali em diante. Nada de saudosismo. Nada de imaginar o que poderia ter sido e que, de fato, não foi. Nada de ficar lamentando a vida. Não havia nada que lamentar. Nada de poesia também. Não queria encontrar forças no rio, nem na infância. Não queria adivinhar o futuro, o momento não era mágico, afinal. Era apenas um encontro com um velho amigo. Como se, agora, de volta, não soubesse muito bem para onde ir. Sentia-se um pouco estrangeiro no tempo, naquela cidade, naquele momento. Sabia que era questão de se adaptar novamente, ter um emprego, conhecer as pessoas de sua idade e a vida teria o rumo melhor, como sempre foi em sua vida. A única coisa que tomou mesmo seus pensamentos foi o fato de ter se esquecido daquele lugar por tanto tempo. Memória é algo que incomoda. A vida toma certo rumo e, de repente, um vácuo na lembrança. Um apagão de uma época inteira. Um espaço ocupado por outra coisa, não sabe ao certo o quê. E então, como num estalar de dedos, alguma imagem toma os olhos por completo e tudo se faz novamente. A imagem está lá, de novo, como se fosse possível tocar com as mãos. O tempo em que ficou armazenada, sem uso, escondida, não é possível precisar. O estranhamento está no fato de que, depois de semi-esquecida, a imagem torna-se total invenção. Não se pode mais provar nada a seu respeito, não se tem certeza de mais nada. Absolutamente. Sobretudo quando a imagem é como essa: um encontro solitário com o rio.
O rapaz pega os sapatos nas mãos e volta caminhando. Pensando coisa outra. Na próxima esquina já terá planos, já terá sonhos, já terá certeza da vida. O rio ficará a ser mais um sonho de um tempo que, na verdade, ele nem sabe se existe.

3 comentários:

Garanhão da LAge disse...

escreve uma cartinha pra mim xuxu

minha musa da mangueira!

clara novaes disse...

imaginando o que a mãe havia feito no almoço... pra mim isso é muito uma lembrança da infância, tanto que ainda ontem, imaginando a minha mãe aqui em breve, me disse vou trabalhar alguns dias, so pra ter o prazer de voltar pra casa na hora do almoço e sentir o cheiro de novo de algo surpresa que ela preparou...
ficou lindo o novo visage do blog...
fico feliz de ler os teus escritos !

Ontem_vem_chegando disse...

Faz um tempo já que eu quero ler "Enterrem meu coração na curva do rio". Sua estória despertou em mim o desejo de adquirir a obra. O sangue Dakota, Ute, Sioux, Cheyenne, são tantos testemunhos de uma luta tão desigual...