Augusto passava o café enquanto a mulher praguejava contra “um bendito passarinho que canta todo dia às sete horas em ponto!” Não sabe que é domingo? Não a deixa em paz. Queria dormir e não ver a manhã de domingo. Não queria ver o sol raiar sobre o chão da sala. Não queria ter de recobrar a consciência no domingo pela manhã. Ligava para a mãe. A mãe levaria um remédio para a dor de cabeça da filha. O silêncio de Augusto fazia-a ouvir o canto do pássaro como o apito incansável de uma fábrica. Alice e o pai resolveram não falar nada sobre as plantas. Elas atrairiam mais pássaros, não era o momento ideal para presenteá-los. Segunda-feira, antes do almoço, as plantas já estariam espalhadas pela sala, banheiro, hall da casa de Alice... “Deu cor à casa!” É o que dirá Cecília à amiga. Leve perfume de terra viva. Isso faria Cecília lembrar-se da casa da mãe, no interior, da partida do pai. Pensaria em Augusto, logo em seguida. Torceria para ouvir cantar o mesmo pássaro, aquele de um outro domingo, há três anos, feriado de sete de setembro. Cecília remontaria as peças da memória. Augusto ao seu lado, escondido. Um beijo sincero de amor guardado. Para Cecília e Augusto, aquele pássaro cantava ao piano, vestido de fraque, na copa de algum flamboaiã. Embalava uma sensação de infinito, de esperança, de alguma aventura no tempo.
segunda-feira, julho 27, 2009
domingo, julho 26, 2009
Tatuagem
Olhou a tatuagem dele, dormindo. Sentiria falta de descobrir significados para o desenho naquelas costas? Os olhos abertos remexem-se na cama, sem sono. Poetiza por mais uma vez um sonho em traços sombrios. Antes da cinco e meia deixa o quarto e pega o ônibus na avenida mais próxima. Vê entre os prédios o desenho das costas que ainda dormem na cama de um hotel.
quarta-feira, julho 22, 2009
Otávio
O café amargo fez Otávio esquecer o caderno no canto da mesa. Em compensação fez lembrar Ana. Ela fazia o pior café que já tinha tomado na vida. Lembra dela levantando animada da cama. O cheiro do pó dissolvendo na água fervendo era agradável e o fazia sentir-se como numa fazenda, no interior do estado. Na verdade, nunca havia estado numa fazenda no interior, nem sabia que cheiro tinha o pó de café de lá. Mas também nunca tinha passado a noite com Ana. Toda sensação era nova. Ela colocou as duas xícaras sobre a mesa. Uma delas tinha uma pintura de Picasso ou Escher, não se lembra bem. A outra tinha a asa quebrada. Otávio, ainda deitado na cama, tentava apreender as sensações todas. O apartamento era pequeno. A cama num canto, a mesa noutro, dava pra ver o dia pela grande janela. Já era dia. Ana o chama para tomarem o café. Otávio tenta disfarçar o amargo que desce pela garganta. Ela sorri e também disfarça, todos sabemos que ela não é grande coisa na cozinha. Nem mesmo para fazer um simples café.
Otávio volta de seus pensamentos, concentra-se novamente. Não seria má ideia andar pela rua. Domingo é dia calmo e solitário, isso pode ser bom.
terça-feira, julho 14, 2009
Frio
A janela se debate, reclama dos golpes que o vento lhe acerta. Chacoalha, treme, grita. Já pensei tantas vezes em colocar um calço. Problema é que adormeço e, quando acordo, já não me lembro do barulho. Só me darei conta dele novamente na próxima noite, quando estarei com o cobertor enrolado no corpo, prestes a esquecer mais um dia. Na posição para dormir, não me atrevo a levantar novamente. Depois, não vou conseguir vedar todas as frestas entre o colchão, o cobertor e meu corpo. Problema é se habituar ao frio. Adormeço, ora ou outra, ouvindo o escândalo da janela ou não. A casa não vai cair, fico afirmando o tempo todo, é só a janela que se debate. Meu pensamento faz-se mais alto do que a veneziana enferrujada. Meu pensamento faz muito barulho. Penso por longo tempo antes de dormir. Não é caso de insônia. É um ritual, penso, penso, penso. Depois adormeço. Por isso nem sempre estou atento ao barulho da janela, por isso consigo dormir. Problema é lembrar as decisões tomadas naquele momento. Muitas coisas são decididas antes do sono. A maioria delas serve apenas como consolo, para ter certeza de que a vida vale qualquer coisa a mais do que de fato vale. Só para ter o sono dos justos, dos bons. Não se trata de uma mentira. O fato é que adormeço e, no dia seguinte, não há barulho na janela, nem nada além do que isto mesmo que vejo ao abrir os olhos. Nenhuma decisão de fato. Nada me convence. Problema é a dor no corpo, contorcido, comprimido, sem barulho, só frio.
quinta-feira, julho 02, 2009
As cidades
Era a terceira vez que voltava. Cada uma das vezes, numa casa diferente. Saíra da cidade ora para estudar, ora para trabalhar. Uma única vez para fugir. Agora estava de volta. Olhava para a rua do lado de fora. Por volta das quatro horas, o sol já estava enfraquecendo e as nuvens pesadas sinalizavam o início de um inverno rigoroso. Deteve-se ali, longos minutos, tentando encontrar afinidade com aquelas ruas. Sentia como se nada ali fosse parte de si. A cidade não lhe pertencia mais como outrora. Nada lhe dizia mais respeito. Não encontrava familiaridade mais com ela. Sentiu-se assim outras vezes, todas as vezes que partira. Porém, quando voltava, reconhecia sua história nas coisas, nas pessoas e logo a casa era tomada como espaço seu, depois tomaria como sua aquela rua, algum bar, determinada livraria, alguma banca de jornal, um restaurante, quem sabe? Desta vez permaneceu estrangeiro. E sabia que em nenhum outro lugar encontraria abrigo.
Assinar:
Postagens (Atom)