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sábado, novembro 07, 2009
segunda-feira, julho 27, 2009
Pássaro
Augusto passava o café enquanto a mulher praguejava contra “um bendito passarinho que canta todo dia às sete horas em ponto!” Não sabe que é domingo? Não a deixa em paz. Queria dormir e não ver a manhã de domingo. Não queria ver o sol raiar sobre o chão da sala. Não queria ter de recobrar a consciência no domingo pela manhã. Ligava para a mãe. A mãe levaria um remédio para a dor de cabeça da filha. O silêncio de Augusto fazia-a ouvir o canto do pássaro como o apito incansável de uma fábrica. Alice e o pai resolveram não falar nada sobre as plantas. Elas atrairiam mais pássaros, não era o momento ideal para presenteá-los. Segunda-feira, antes do almoço, as plantas já estariam espalhadas pela sala, banheiro, hall da casa de Alice... “Deu cor à casa!” É o que dirá Cecília à amiga. Leve perfume de terra viva. Isso faria Cecília lembrar-se da casa da mãe, no interior, da partida do pai. Pensaria em Augusto, logo em seguida. Torceria para ouvir cantar o mesmo pássaro, aquele de um outro domingo, há três anos, feriado de sete de setembro. Cecília remontaria as peças da memória. Augusto ao seu lado, escondido. Um beijo sincero de amor guardado. Para Cecília e Augusto, aquele pássaro cantava ao piano, vestido de fraque, na copa de algum flamboaiã. Embalava uma sensação de infinito, de esperança, de alguma aventura no tempo.
domingo, julho 26, 2009
Tatuagem
Olhou a tatuagem dele, dormindo. Sentiria falta de descobrir significados para o desenho naquelas costas? Os olhos abertos remexem-se na cama, sem sono. Poetiza por mais uma vez um sonho em traços sombrios. Antes da cinco e meia deixa o quarto e pega o ônibus na avenida mais próxima. Vê entre os prédios o desenho das costas que ainda dormem na cama de um hotel.
quarta-feira, julho 22, 2009
Otávio
O café amargo fez Otávio esquecer o caderno no canto da mesa. Em compensação fez lembrar Ana. Ela fazia o pior café que já tinha tomado na vida. Lembra dela levantando animada da cama. O cheiro do pó dissolvendo na água fervendo era agradável e o fazia sentir-se como numa fazenda, no interior do estado. Na verdade, nunca havia estado numa fazenda no interior, nem sabia que cheiro tinha o pó de café de lá. Mas também nunca tinha passado a noite com Ana. Toda sensação era nova. Ela colocou as duas xícaras sobre a mesa. Uma delas tinha uma pintura de Picasso ou Escher, não se lembra bem. A outra tinha a asa quebrada. Otávio, ainda deitado na cama, tentava apreender as sensações todas. O apartamento era pequeno. A cama num canto, a mesa noutro, dava pra ver o dia pela grande janela. Já era dia. Ana o chama para tomarem o café. Otávio tenta disfarçar o amargo que desce pela garganta. Ela sorri e também disfarça, todos sabemos que ela não é grande coisa na cozinha. Nem mesmo para fazer um simples café.
Otávio volta de seus pensamentos, concentra-se novamente. Não seria má ideia andar pela rua. Domingo é dia calmo e solitário, isso pode ser bom.
terça-feira, julho 14, 2009
Frio
A janela se debate, reclama dos golpes que o vento lhe acerta. Chacoalha, treme, grita. Já pensei tantas vezes em colocar um calço. Problema é que adormeço e, quando acordo, já não me lembro do barulho. Só me darei conta dele novamente na próxima noite, quando estarei com o cobertor enrolado no corpo, prestes a esquecer mais um dia. Na posição para dormir, não me atrevo a levantar novamente. Depois, não vou conseguir vedar todas as frestas entre o colchão, o cobertor e meu corpo. Problema é se habituar ao frio. Adormeço, ora ou outra, ouvindo o escândalo da janela ou não. A casa não vai cair, fico afirmando o tempo todo, é só a janela que se debate. Meu pensamento faz-se mais alto do que a veneziana enferrujada. Meu pensamento faz muito barulho. Penso por longo tempo antes de dormir. Não é caso de insônia. É um ritual, penso, penso, penso. Depois adormeço. Por isso nem sempre estou atento ao barulho da janela, por isso consigo dormir. Problema é lembrar as decisões tomadas naquele momento. Muitas coisas são decididas antes do sono. A maioria delas serve apenas como consolo, para ter certeza de que a vida vale qualquer coisa a mais do que de fato vale. Só para ter o sono dos justos, dos bons. Não se trata de uma mentira. O fato é que adormeço e, no dia seguinte, não há barulho na janela, nem nada além do que isto mesmo que vejo ao abrir os olhos. Nenhuma decisão de fato. Nada me convence. Problema é a dor no corpo, contorcido, comprimido, sem barulho, só frio.
quinta-feira, julho 02, 2009
As cidades
Era a terceira vez que voltava. Cada uma das vezes, numa casa diferente. Saíra da cidade ora para estudar, ora para trabalhar. Uma única vez para fugir. Agora estava de volta. Olhava para a rua do lado de fora. Por volta das quatro horas, o sol já estava enfraquecendo e as nuvens pesadas sinalizavam o início de um inverno rigoroso. Deteve-se ali, longos minutos, tentando encontrar afinidade com aquelas ruas. Sentia como se nada ali fosse parte de si. A cidade não lhe pertencia mais como outrora. Nada lhe dizia mais respeito. Não encontrava familiaridade mais com ela. Sentiu-se assim outras vezes, todas as vezes que partira. Porém, quando voltava, reconhecia sua história nas coisas, nas pessoas e logo a casa era tomada como espaço seu, depois tomaria como sua aquela rua, algum bar, determinada livraria, alguma banca de jornal, um restaurante, quem sabe? Desta vez permaneceu estrangeiro. E sabia que em nenhum outro lugar encontraria abrigo.
quinta-feira, maio 28, 2009
Lembrou-se de que gostava de sentar-se na beira do rio. Havia uma leve ribanceira, logo quando as águas faziam certo contorno para a direita, antes de seguirem seu percurso cortando toda a cidade. Sentava-se ali. Ficava apenas a olhar o rio. Quando criança, era caminho da escola. Tantas vezes chegara atrasado, correndo, língua de fora. A inspetora quase fechando o enorme portão azul. Passava rápido, feito filme de super herói. Ouvia o grito da mulher já bem longe. “da próxima vez, não entra mais!” Houve uma vez que fez o inverso. Ao sair da escola, passou por lá. Isso era raro, já que saía da aula cheio de fome, imaginando o que a mãe havia feito no almoço. Sempre corria feito vento de volta pra casa. Mas naquele dia, parou pra ver o rio. Sentou-se ali. Estava apenas a olhar o rio. Perdeu noção de tempo, a mãe já estava enlouquecida de tanto imaginar desgraça. Abraçou o filho, deu-lhe um puxão de orelha, um beijo no rosto e foi esquentar a comida para o moleque desnaturado.
Quando voltou à cidade dos pais, anos depois, faculdade terminada, andava meio sem ter pra onde ir, próximo de uma pequena ponte que ligava o bairro ao centro da cidade. Deu-se conta do rio. Foi até a ribanceira, como antigamente. Lembrou-se devagar do caminho. Tirou os sapatos, sentou-se na mesma ribanceira. Olhou pra dentro da água. Não é preciso dizer que não viu o garoto ali refletido. Que não reconheceu o cabelo, nem os olhos de criança. Ele sabia que era essa a sensação que teria naquele momento. Ele estava olhando mesmo para si, sem a memória de outrora. Sem a paciência de outrora. Sem ser o menino de outrora. A vontade era só de ficar só. A olhar o rio. Brincar de imaginar como seria dali em diante. Nada de saudosismo. Nada de imaginar o que poderia ter sido e que, de fato, não foi. Nada de ficar lamentando a vida. Não havia nada que lamentar. Nada de poesia também. Não queria encontrar forças no rio, nem na infância. Não queria adivinhar o futuro, o momento não era mágico, afinal. Era apenas um encontro com um velho amigo. Como se, agora, de volta, não soubesse muito bem para onde ir. Sentia-se um pouco estrangeiro no tempo, naquela cidade, naquele momento. Sabia que era questão de se adaptar novamente, ter um emprego, conhecer as pessoas de sua idade e a vida teria o rumo melhor, como sempre foi em sua vida. A única coisa que tomou mesmo seus pensamentos foi o fato de ter se esquecido daquele lugar por tanto tempo. Memória é algo que incomoda. A vida toma certo rumo e, de repente, um vácuo na lembrança. Um apagão de uma época inteira. Um espaço ocupado por outra coisa, não sabe ao certo o quê. E então, como num estalar de dedos, alguma imagem toma os olhos por completo e tudo se faz novamente. A imagem está lá, de novo, como se fosse possível tocar com as mãos. O tempo em que ficou armazenada, sem uso, escondida, não é possível precisar. O estranhamento está no fato de que, depois de semi-esquecida, a imagem torna-se total invenção. Não se pode mais provar nada a seu respeito, não se tem certeza de mais nada. Absolutamente. Sobretudo quando a imagem é como essa: um encontro solitário com o rio.
O rapaz pega os sapatos nas mãos e volta caminhando. Pensando coisa outra. Na próxima esquina já terá planos, já terá sonhos, já terá certeza da vida. O rio ficará a ser mais um sonho de um tempo que, na verdade, ele nem sabe se existe.
Quando voltou à cidade dos pais, anos depois, faculdade terminada, andava meio sem ter pra onde ir, próximo de uma pequena ponte que ligava o bairro ao centro da cidade. Deu-se conta do rio. Foi até a ribanceira, como antigamente. Lembrou-se devagar do caminho. Tirou os sapatos, sentou-se na mesma ribanceira. Olhou pra dentro da água. Não é preciso dizer que não viu o garoto ali refletido. Que não reconheceu o cabelo, nem os olhos de criança. Ele sabia que era essa a sensação que teria naquele momento. Ele estava olhando mesmo para si, sem a memória de outrora. Sem a paciência de outrora. Sem ser o menino de outrora. A vontade era só de ficar só. A olhar o rio. Brincar de imaginar como seria dali em diante. Nada de saudosismo. Nada de imaginar o que poderia ter sido e que, de fato, não foi. Nada de ficar lamentando a vida. Não havia nada que lamentar. Nada de poesia também. Não queria encontrar forças no rio, nem na infância. Não queria adivinhar o futuro, o momento não era mágico, afinal. Era apenas um encontro com um velho amigo. Como se, agora, de volta, não soubesse muito bem para onde ir. Sentia-se um pouco estrangeiro no tempo, naquela cidade, naquele momento. Sabia que era questão de se adaptar novamente, ter um emprego, conhecer as pessoas de sua idade e a vida teria o rumo melhor, como sempre foi em sua vida. A única coisa que tomou mesmo seus pensamentos foi o fato de ter se esquecido daquele lugar por tanto tempo. Memória é algo que incomoda. A vida toma certo rumo e, de repente, um vácuo na lembrança. Um apagão de uma época inteira. Um espaço ocupado por outra coisa, não sabe ao certo o quê. E então, como num estalar de dedos, alguma imagem toma os olhos por completo e tudo se faz novamente. A imagem está lá, de novo, como se fosse possível tocar com as mãos. O tempo em que ficou armazenada, sem uso, escondida, não é possível precisar. O estranhamento está no fato de que, depois de semi-esquecida, a imagem torna-se total invenção. Não se pode mais provar nada a seu respeito, não se tem certeza de mais nada. Absolutamente. Sobretudo quando a imagem é como essa: um encontro solitário com o rio.
O rapaz pega os sapatos nas mãos e volta caminhando. Pensando coisa outra. Na próxima esquina já terá planos, já terá sonhos, já terá certeza da vida. O rio ficará a ser mais um sonho de um tempo que, na verdade, ele nem sabe se existe.
domingo, maio 24, 2009
Sala 62

Trabalho neste escritório tem alguns anos. Comecei na sala 12, primeiro andar, ainda inseguro, recém-formado. Três anos depois estava já noutra sala, noutro cargo, noutra dimensão. A sala agora é no sexto andar. Curiosamente a sala 62. Alguma numerologia deve explicar a coincidência. A vista que tenho agora da janela é exatamente a mesma de antigamente. Talvez com a diferença da panorâmica, numa altura que me permite ver além da praça XV e do restaurante japonês do outro lado da rua. Dos cinco andares que me separam daquele primeiro emprego - menos responsável e menos burocrático – fica a sensação de nunca ter mudado de janela.
Não que eu fique todo o tempo espiando a vida passar do lado de fora dos meus afazeres diários. Nada disso. É que há coisas que se fazem atentar. Certa rotina nos torna familiar à situação. Quando olho pela janela e vejo as coisas que todos os dias acontecem, sinto-me à vontade com as coisas que todos os dias faço também. Parece que percebemos, nessas horas, as engrenagens do mundo de fato funcionando.
Há coisas, entretanto, que, mesmo fazendo parte da rotina, causam certa estranheza. Estou acostumado à vida daquela praça e das ruas que a contorna. Estou acostumado às pessoas e até à comida do restaurante japonês. Mas há algumas coisas com quais não acostumo.
Todos os dias, aquele homem fica no mesmo lugar. Seu lugar é a praça, chega por volta das dez da manhã e só sai de lá entre duas e três da tarde. Certamente vai tomar seu lanche, vai ao banheiro, vai às compras, não faço a menor ideia do que ele tem a fazer. Sei que ele volta exatamente uma hora depois. Seu expediente vai para além das seis horas da tarde. Quando vou embora, ele ainda está lá. Veste trajes pouco convencionais. Está sempre de chapéu – varia entre um gorro, uma boina e um outro à moda panamá - camisa abotoada, terno. A roupa, pode-se ver, é um pouco desgastada, tem manchas de nódoas pelo casaco, a calça tem a barra desfiada. O sapato marrom não sente o esfregar de uma graxa por muito tempo. De qualquer modo, ele está lá todos os dias. Traz um jornal nas mãos, por vezes algum livro, revista de palavras-cruzadas. Senta-se no mesmo banco. Põe uma caixinha encapada com papel colorido ao seu lado e fica ali, por todo o tempo que já mencionei. O curioso é que há pessoas que passam por ele e deixam-lhe moedas na caixinha. Deixam-lhe notas. Pessoas diversas, mães com crianças, senhores, rapazes, garotas, uma gama de personalidades deposita-lhe a confiança em dinheiro. Pagam com seus ordenados o tempo que aquele homem dedica à praça.
Algumas pessoas transitam a vida de um modo que contraria toda a expectativa de a engrenagem continuar seu ciclo, sua rotina, seu movimento. Imagino-o chegando em sua casa, comentando com usa família sobre o dia que tivera, sobre as coisas que lera, sobre a praça, que é seu ambiente de trabalho. Imagino-o sozinho, chegando em algum albergue, em algum asilo, em qualquer lugar. Imagino-o deitando sua cabeça no travesseiro e sentindo-se tão trabalhador quanto qualquer um de nós.
Não que eu fique todo o tempo espiando a vida passar do lado de fora dos meus afazeres diários. Nada disso. É que há coisas que se fazem atentar. Certa rotina nos torna familiar à situação. Quando olho pela janela e vejo as coisas que todos os dias acontecem, sinto-me à vontade com as coisas que todos os dias faço também. Parece que percebemos, nessas horas, as engrenagens do mundo de fato funcionando.
Há coisas, entretanto, que, mesmo fazendo parte da rotina, causam certa estranheza. Estou acostumado à vida daquela praça e das ruas que a contorna. Estou acostumado às pessoas e até à comida do restaurante japonês. Mas há algumas coisas com quais não acostumo.
Todos os dias, aquele homem fica no mesmo lugar. Seu lugar é a praça, chega por volta das dez da manhã e só sai de lá entre duas e três da tarde. Certamente vai tomar seu lanche, vai ao banheiro, vai às compras, não faço a menor ideia do que ele tem a fazer. Sei que ele volta exatamente uma hora depois. Seu expediente vai para além das seis horas da tarde. Quando vou embora, ele ainda está lá. Veste trajes pouco convencionais. Está sempre de chapéu – varia entre um gorro, uma boina e um outro à moda panamá - camisa abotoada, terno. A roupa, pode-se ver, é um pouco desgastada, tem manchas de nódoas pelo casaco, a calça tem a barra desfiada. O sapato marrom não sente o esfregar de uma graxa por muito tempo. De qualquer modo, ele está lá todos os dias. Traz um jornal nas mãos, por vezes algum livro, revista de palavras-cruzadas. Senta-se no mesmo banco. Põe uma caixinha encapada com papel colorido ao seu lado e fica ali, por todo o tempo que já mencionei. O curioso é que há pessoas que passam por ele e deixam-lhe moedas na caixinha. Deixam-lhe notas. Pessoas diversas, mães com crianças, senhores, rapazes, garotas, uma gama de personalidades deposita-lhe a confiança em dinheiro. Pagam com seus ordenados o tempo que aquele homem dedica à praça.
Algumas pessoas transitam a vida de um modo que contraria toda a expectativa de a engrenagem continuar seu ciclo, sua rotina, seu movimento. Imagino-o chegando em sua casa, comentando com usa família sobre o dia que tivera, sobre as coisas que lera, sobre a praça, que é seu ambiente de trabalho. Imagino-o sozinho, chegando em algum albergue, em algum asilo, em qualquer lugar. Imagino-o deitando sua cabeça no travesseiro e sentindo-se tão trabalhador quanto qualquer um de nós.
quarta-feira, maio 20, 2009
Silêncio
Houve uma vez. Uma única vez. Estava atravessando uma rua, olhei para lado algum, andei destemida, cabeça cheia de ideias, cheia daquela sensação de estar comprometida com algo de natureza maior. Uma vez e nunca mais. O carro passou e levou com ele minhas ideias todas, minha natureza quase supra-humana. O susto me fez abrir os olhos somente quando já estava no chão. O motorista do carro, um homem alto e magricela, disse que eu olhei dentro dos olhos dele quando rolei pelo capô e fui parar no asfalto. Eu não sei nada disso. A única coisa que sei de fato é que ficaram no asfalto aquelas ideias de natureza maior. Não é possível que elas existam de verdade. Não há outra natureza. Toda vez que pensei nalgum outro universo (de ideias, de trabalhos, de projetos) fui levada ao chão. Aquele momento pareceu-me muitíssimo exemplar. A natureza que julgava maior é, na verdade, somente a natureza do silêncio. E talvez o silêncio pareça mesmo ser algo de outra natureza porque a natureza humana se ocupa muito com barulhar. O tempo todo, as pessoas falam e falam demais. As pessoas têm verdades a dizer, as pessoas têm mentiras a apontar. Todo o tempo. Minha natureza anda em silêncio.
terça-feira, maio 05, 2009
Caixinha de filmes
Tinha uma caixinha de madeira. Não media mais do que dez centímetros. Quadradinha. Decorada com pequenas pedras coloridas. Havia adquirido aquele objeto numa loja de quinquilharias. A loja tinha utensílios antigos, móveis usados, enciclopédias ultrapassadas. Viu a caixinha no canto, sobre uma escrivaninha. Certamente, gostou da escrivaninha. Uma peça conservada, era mesmo bonita. Preço amargo, resolveu levar só a caixinha. Colocou-a num canto da estante, meio que para segurar a pilha de livros.
Objeto sem utilidade não tem razão de ser.
Resolveu, dias depois, guardar dentro da caixinha um bilhete de cinema. Havia gostado do filme. Quis guardar o bilhete.
O objeto passou a ter utilidade: guardava bilhetes de cinema.
Costumava ir ao cinema sozinha. Sexta-feira à noite, domingo à tarde.
Já devia ter quatro ou cinco bilhetes acumulados, quando chegou tarde da noite, sessão das onze, foi guardar o novo ticket na caixinha. Olhou para cada um daqueles ali reunidos. Um chamou-lhe a atenção. Não se lembrava da história. O nome lhe parecia alheio. Estranha sensação. Não sabia de que se tratava aquele filme. Bilhete de cinema. Não encontrou a data nem o horário, estavam ligeiramente apagados. Procurou o filme na lista de cinemas da internet. Encontrou o título numa sala distante do trabalho, distante de casa. Leu a sinopse. Nenhuma imagem lhe vinha à mente. Pensou em ver o filme de novo. Se guardou o bilhete, é porque gostou do filme.
No dia seguinte, almoçou na padaria perto do metrô e foi para o cinema. Comprou o bilhete. Olhou bem para ele. Não conseguiu puxar da lembrança nenhuma relação com aquele outro, guardado em casa dentro da caixinha.
Ao sair do filme, ainda muito emocionada, deu-se conta de que aquele seria, sem dúvida, um dos melhores filmes que havia visto nos últimos tempos. Mas decididamente não havia visto nada parecido antes.
Guardou o bilhete junto do outro, na mesma caixinha.
Não quis pensar no improvável.
Noutra semana, sensação esquisita. Vontade ver um bom filme. Abriu a caixinha para relembrar aquele outro. Tão bonito. Improvável. Viu outro ticket que desconhecia. Não teve dúvidas. Procurou na internet. Dessa vez, viu apenas o endereço da sala, nada de sinopse.
Guardado o novo ticket, pensou que esse havia lhe tocado de alguma forma e tomado seus pensamentos, mas não era o tipo de filme que costumava ver. Linguagem incomodou. Narrativa incomodou. Era um bom filme, não podia negar. Mas incomodava um bocado.
Passou a ansiar pela indicação da caixinha. Olhava com frequência, quase todo dia. Mas assim não funcionava. Tinha de ser surpresa. A caixinha era geniosa.
Aconteceu outras vezes, sim. Tempo depois. Guardou o bilhete com carinho.
Outras e outras vezes.
A caixinha virou companhia de cinema. Como se discutissem juntas as novas produções, os melhores atores, os temas. Começou até a fazer um fichamento dos filmes que as duas, ela e a caixinha, gostavam.
Pensa em publicação. Mas não sabe como contará sobre as indicações na orelha do livro. Acha que é deselegante ficar com toda a fama, com todo o mérito. Não há mérito. A caixinha tem de aparecer de alguma forma. Quem sabe no título do livro? Foto de capa. Mensagem subliminar. Seria um bom livro. Sucesso, sem dúvida.
Objeto sem utilidade não tem razão de ser.
Resolveu, dias depois, guardar dentro da caixinha um bilhete de cinema. Havia gostado do filme. Quis guardar o bilhete.
O objeto passou a ter utilidade: guardava bilhetes de cinema.
Costumava ir ao cinema sozinha. Sexta-feira à noite, domingo à tarde.
Já devia ter quatro ou cinco bilhetes acumulados, quando chegou tarde da noite, sessão das onze, foi guardar o novo ticket na caixinha. Olhou para cada um daqueles ali reunidos. Um chamou-lhe a atenção. Não se lembrava da história. O nome lhe parecia alheio. Estranha sensação. Não sabia de que se tratava aquele filme. Bilhete de cinema. Não encontrou a data nem o horário, estavam ligeiramente apagados. Procurou o filme na lista de cinemas da internet. Encontrou o título numa sala distante do trabalho, distante de casa. Leu a sinopse. Nenhuma imagem lhe vinha à mente. Pensou em ver o filme de novo. Se guardou o bilhete, é porque gostou do filme.
No dia seguinte, almoçou na padaria perto do metrô e foi para o cinema. Comprou o bilhete. Olhou bem para ele. Não conseguiu puxar da lembrança nenhuma relação com aquele outro, guardado em casa dentro da caixinha.
Ao sair do filme, ainda muito emocionada, deu-se conta de que aquele seria, sem dúvida, um dos melhores filmes que havia visto nos últimos tempos. Mas decididamente não havia visto nada parecido antes.
Guardou o bilhete junto do outro, na mesma caixinha.
Não quis pensar no improvável.
Noutra semana, sensação esquisita. Vontade ver um bom filme. Abriu a caixinha para relembrar aquele outro. Tão bonito. Improvável. Viu outro ticket que desconhecia. Não teve dúvidas. Procurou na internet. Dessa vez, viu apenas o endereço da sala, nada de sinopse.
Guardado o novo ticket, pensou que esse havia lhe tocado de alguma forma e tomado seus pensamentos, mas não era o tipo de filme que costumava ver. Linguagem incomodou. Narrativa incomodou. Era um bom filme, não podia negar. Mas incomodava um bocado.
Passou a ansiar pela indicação da caixinha. Olhava com frequência, quase todo dia. Mas assim não funcionava. Tinha de ser surpresa. A caixinha era geniosa.
Aconteceu outras vezes, sim. Tempo depois. Guardou o bilhete com carinho.
Outras e outras vezes.
A caixinha virou companhia de cinema. Como se discutissem juntas as novas produções, os melhores atores, os temas. Começou até a fazer um fichamento dos filmes que as duas, ela e a caixinha, gostavam.
Pensa em publicação. Mas não sabe como contará sobre as indicações na orelha do livro. Acha que é deselegante ficar com toda a fama, com todo o mérito. Não há mérito. A caixinha tem de aparecer de alguma forma. Quem sabe no título do livro? Foto de capa. Mensagem subliminar. Seria um bom livro. Sucesso, sem dúvida.
sábado, maio 02, 2009
Pão Doce
Pelos. Um tuchinho embolado veio em minha direção. O cachorro chacoalhava-se todo, empurrando pelos e pulgas para o meu lado. Era escuro, não demonstrava a sujeira da rua. Parecia inofensivo, apesar do tamanho médio. Terminado o ritual, sentou-se ereto e olhou para mim, com a boca aberta e a língua de fora, cansado do exercício. Olhou. Desviei. Senti-me invadindo seu espaço, seu momento de concentração e coceira. Era deselegante observá-lo naquele estado, todo contorcido e reclamando das pulgas. Pensei que ele também havia sido deselegante fazendo voar pelos pra cima de mim. Onde mais eu poderia ficar? Era ponto de ônibus, tinha de pegar o primeiro que passasse. Não passava. Olhando. Veio esmorecido em minha direção. Sentou-se ao meu lado. Esperava ônibus também. Cheirou a sacola de pães que eu trazia. Era abusado. Com o nariz, empurrou a sacola. Agora fazia cara de criança com vontade de tomar o seu sorvete. Nunca gostei de andar com doces na mão por isso. Dividir com criança na rua. Tirei um pedaço de pão da sacola. Dei ao cachorro. Engoliu de uma só vez. Quis mais. Estava pronta para lutar com ele, a qualquer momento me tomaria a sacola e a bolsa e sairia em disparada. Conheço esse tipo. Tirei um pedaço do pão doce. Era para esperar a minha mãe, estava chegando de viagem, eu iria fazer um café como ela faz no interior. Precisava provar pra ela que eu cuidava bem da casa e que fazia um belo café da tarde. Ainda que comprado na padaria. O cachorro comeu metade do pão doce. Dei-lhe duas fatias de queijo. O ônibus está atrasado. Se ele entrar, eu saio. Resolveu cheirar o meio-fio da calçada. Qualquer punhado de água cheirava e tentava lamber. Imaginei que pudesse ser outro líquido, tinha gente de rua por todo lado naquela região. Ele estava com sede. O pão devia estar bem doce. Deixei o coitado com sede. Eu não costumava andar com ração na bolsa nem na sacola! Ele me despertava alguma sensação de culpa. E isso me dava raiva dele. Eu estava só esperando o ônibus, não queria vê-lo se coçar, nem ter notado sua cara de fome. Eu só queria que o ônibus passasse. Ele não subiu. Enquanto pagava a passagem, ainda o vi na calçada. Agora em pé. Abanava o rabo pra mim. Era pra mim. Fiz um tchau. Ele latiu na despedida. Sentei no primeiro banco disponível, talvez o único. Chamei-o Pão Doce. Da próxima vez, trago-o comigo.
sexta-feira, maio 01, 2009
Golpe

terça-feira, abril 28, 2009
A voz dela

segunda-feira, abril 20, 2009
Sismólogo
O chão tremia sob seus pés. Não o tempo todo. Algumas vezes. Não tinha nenhuma regra, não era de modo previsível nem sistemático. Acontecia assim. Estava vivendo a vida que lhe cabia, fazia tudo para que ela fosse a mais normal quanto possível. Então, sem aviso prévio, sentia os tremores vindos do centro da terra. Era como se debaixo da crosta e das camadas terrestres algo desse errado e tudo ficasse em movimento. Isso durava alguns segundos. Nunca chegava a minuto. A primeira vez que se lembra de ter acontecido, ainda pequeno, estava na rua com a mãe. Certamente havia tido outras vezes, não sabe. Imagina que sim, afinal a mãe, ali ao seu lado, estava preparada para segurar firme em suas mãos, calmamente, para não deixar que se apavorasse na frente de todo mundo. Uma senhora que passava pela calçada perguntou o que o garoto tinha. A mãe explicou. Senhora rezou um padre-nosso. Disse que o diabo se mexia sob os pés da criança. Ele esmagava o infeliz. A mãe não deu atenção. Levou-o embora.
O apelido de sismólogo veio na escola. As crianças esperavam ansiosas, podia acontecer a qualquer momento. Às vezes levava semanas, às vezes era mais freqüente. Alguns se deitavam no chão, outros seguravam em sua cabeça. Ninguém sentia nada. Demorou a conseguir controlar o pavor e disfarçar os tremores sob os pés. Mas, mesmo assim, apelido acompanhou-o por anos. Sismólogo.
Em sua cabeça, compunha a história de outro jeito.
Via-se num futuro não muito distante, andando pelas ruas de uma grande cidade. De repente, o tremor acontecia. Abaixava-se no chão, colocava a palma das mãos sobre a terra e sentiria novamente algo mexer-se. Dirigia-se, então, a um prédio muito alto, salas amplas e brancas, falaria com o chefe daquele pessoal todo e relataria o que havia sentido. O homem, com sérias feições, ouviria atentamente. Dar-lhe-ia crédito, afinal, o garoto estava prevendo a tragédia, há anos agendada para a ocasião.
Não conseguiu nunca terminar a história. Ainda sente o tremor. Fricciona as mãos e controla-se. Silencia os pensamentos. Lembra-se de quando era garoto: aguardava que, nalgum momento, certamente no momento exato, soubesse exatamente o que fazer.
O apelido de sismólogo veio na escola. As crianças esperavam ansiosas, podia acontecer a qualquer momento. Às vezes levava semanas, às vezes era mais freqüente. Alguns se deitavam no chão, outros seguravam em sua cabeça. Ninguém sentia nada. Demorou a conseguir controlar o pavor e disfarçar os tremores sob os pés. Mas, mesmo assim, apelido acompanhou-o por anos. Sismólogo.
Em sua cabeça, compunha a história de outro jeito.
Via-se num futuro não muito distante, andando pelas ruas de uma grande cidade. De repente, o tremor acontecia. Abaixava-se no chão, colocava a palma das mãos sobre a terra e sentiria novamente algo mexer-se. Dirigia-se, então, a um prédio muito alto, salas amplas e brancas, falaria com o chefe daquele pessoal todo e relataria o que havia sentido. O homem, com sérias feições, ouviria atentamente. Dar-lhe-ia crédito, afinal, o garoto estava prevendo a tragédia, há anos agendada para a ocasião.
Não conseguiu nunca terminar a história. Ainda sente o tremor. Fricciona as mãos e controla-se. Silencia os pensamentos. Lembra-se de quando era garoto: aguardava que, nalgum momento, certamente no momento exato, soubesse exatamente o que fazer.
domingo, abril 12, 2009
Irmã
Alguma estranha insegurança tornava-se visível quando alternava a ponta dos pés no chão. Sentada à mesa, Valentina esperava a irmã entrar pela porta do restaurante. Tocava de leve a ponta dos pés no assoalho de madeira. Um, depois o outro. Dava leves tapinhas nos joelhos como se cantasse mentalmente alguma canção antiga.
O restaurante era modesto. Queria a toda força ser uma cantina, detalhes das paredes em verde e vermelho, toalha quadriculada. Esbarrava na decoração de um botequim. Entre isto e aquilo, Valentina tomava suco de laranja com pó de guaraná. A irmã demorava a chegar, sempre atrasada. A chuva não esperaria o fim do almoço - nuvens cinzas, vento úmido. A qualquer momento. Não lhe restava outra coisa a fazer. Tocava a ponta dos pés no chão. Pensava na notícia que a irmã traria. Ela estava alegre ao telefone. Valentina sempre desconfiava. A irmã iria rir depois e recomendar algum floral em gotas, calmante natural ou chá de algum mato exótico. A irmã era assim. Valentina não cedia e continuava batucando levemente nos joelhos em descompasso com a ponta dos pés. Se fumasse, disfarçaria a insegurança. A irmã fuma. Parece esvair-se em fumaça. Sempre leve como a cinza do cigarro.
Viviane entra sacudindo o casaco e o cabelo, tem as mãos ágeis. Encosta guarda-chuvas no canto da parede e abre os braços. Valentina toca os pés inteiros no chão, como se estivessem ali plantados para sempre. Aguarda o encontro da irmã.
O vento gelado percorre todo o restaurante. Viviane abraça Valentina fortemente, cheira à chuva, a frio, a inverno de um país desconhecido. Dá leves tapinhas nas costas da irmã. Valentina ouve-a dizer: "bom ver você".
sábado, abril 11, 2009
Barulho
Tem uma luz no alto do prédio que pisca tentando alguma comunicação. Paulo não vê nada mais a sua volta. Sente apertado o estômago, fecha a janela e vai para a cama tentar dormir. Tem trabalho pela manhã. Tem conta para pagar, deverá sair mais cedo, passará no caixa eletrônico.
Levanta novamente e vai à janela. Olha mais um pouco. Nunca há silêncio em suas noites. Sempre tem alguém passando na rua, sempre tem um vizinho acordado falando alto. Sempre tem alguma coisa acontecendo o tempo todo. Não tem nada com isso. Apenas olha o barulho, olha as luzes que estão apagadas. As acesas, ignora. Detém-se nas apagadas. Um pouco de inveja daqueles que dormem. Um pouco de vontade de estar em alguma daquelas casas que aparentam ser calmas, inofensivas. Dentro de seu apartamento não tem luz nenhuma acesa. Somente os olhos e a cabeça não se apagam em definitivo. Volta para a cama e tenta mais uma vez. Tem trabalho pela manhã. Tem conta para pagar, deverá sair mais cedo, passará no caixa eletrônico.
Levanta novamente e vai à janela. Olha mais um pouco. Nunca há silêncio em suas noites. Sempre tem alguém passando na rua, sempre tem um vizinho acordado falando alto. Sempre tem alguma coisa acontecendo o tempo todo. Não tem nada com isso. Apenas olha o barulho, olha as luzes que estão apagadas. As acesas, ignora. Detém-se nas apagadas. Um pouco de inveja daqueles que dormem. Um pouco de vontade de estar em alguma daquelas casas que aparentam ser calmas, inofensivas. Dentro de seu apartamento não tem luz nenhuma acesa. Somente os olhos e a cabeça não se apagam em definitivo. Volta para a cama e tenta mais uma vez. Tem trabalho pela manhã. Tem conta para pagar, deverá sair mais cedo, passará no caixa eletrônico.
terça-feira, março 31, 2009
Canela
É a última vez que passa pelo corredor. O elevador ainda tenta dar-lhe a chance de voltar. Não volta. Os passos ensaiam alguma dança. Pela escada. Não volta. Ali está. A rua amanhecendo. O elevador pela última vez abre, insiste e ela não vê. Procura forças dentro da bolsa. Encontra um batom. Canela. Tira um lenço de papel. E não volta.
segunda-feira, março 30, 2009
Vestido rodado que a mãe fizera para a ocasião. As palmas embalavam a música e Viridiana girava com graça. Enquanto o mundo misturava as cores à sua volta, com luzes artificiais e a fogueira, via o sorriso orgulhoso do seu par. Rapaz perfumado e camisa abotoada até a altura do peito.
Do balcão, Casimiro observa.
A mãe da moça observa.
O pai a moça observa.
O dono da mercearia enche o copo de Casimiro. Ele estala os dedos da mão esquerda. Vira o copo com a direita. Não tira os olhos da dança. Viridiana puxa a fila dos pares. Parece saltitar. Música alta. Casimiro levanta. Quem o conhece acompanha cada um dos passos cambaleantes que dá. O cachorro, deitado na calçada, barriga cheia de comer os restos do lixo, leva um susto. Casimiro quase pisa na patinha dianteira, pega seu caminho, vai para casa. O cachorro late. Vê a silhueta diminuir a cada passo. Late. Vira a última lata de lixo, saca um qualquer coisa embrulhado e corre atrás do moço.
Leva um resto da noite de lembrança para o dia seguinte.
A mãe da moça observa.
O pai a moça observa.
O dono da mercearia enche o copo de Casimiro. Ele estala os dedos da mão esquerda. Vira o copo com a direita. Não tira os olhos da dança. Viridiana puxa a fila dos pares. Parece saltitar. Música alta. Casimiro levanta. Quem o conhece acompanha cada um dos passos cambaleantes que dá. O cachorro, deitado na calçada, barriga cheia de comer os restos do lixo, leva um susto. Casimiro quase pisa na patinha dianteira, pega seu caminho, vai para casa. O cachorro late. Vê a silhueta diminuir a cada passo. Late. Vira a última lata de lixo, saca um qualquer coisa embrulhado e corre atrás do moço.
Leva um resto da noite de lembrança para o dia seguinte.
terça-feira, março 24, 2009
Pedro Nascimento. É um bom sujeito. Quase não fala. Quase não come. Quase não se movimenta no apertado espaço reservado para ele. Divide apartamento com o peixe dourado. Pedro Nascimento. Está em pé, inclinado para frente. Olha o aquário retangular. Vê a si mesmo no reflexo do vidro. Sem os braços, só cauda. Flutua e não fecha os olhos. Vai de um extremo a outro do retângulo. Os movimentos são fáceis, a água tem boa temperatura. Olha pelo vidro o apartamento pequeno. Dá um impulso. Qualquer dia volta para lá.
segunda-feira, março 23, 2009
Passo
Um passo adiante e estaria dentro da sala. Recuou e decidiu tomar um café. Ele estava esperando por horas a idéia lhe aparecer. Tantas e tantas vezes havia acontecido assim. Entrava na sala, sentava-se diante da tela do computador e começava a escrever. Colocou o pó na cafeteira italiana. Esperava a água borbulhar e tomar para si o aroma e o gosto do pó. Já tinha lido o jornal, já tinha visto a notícia da tv. Estava sem paciência. Precisava daquele momento solitário diante do computador. Precisava escrever. Precisava sentir-se vivo. Que lhe restava da vida senão aquilo? Nenhuma idéia. Nada. Uma preguiça tomou conta dos dedos, da cabeça, dos ombros. Estava mesmo tão pouco vivo. Apagou o fogo. Abriu a geladeira, pegou a cerveja. Mais um dia sem almoço, sem fome. Abriu a garrafinha. Sentou-se. Nada que pudesse fazer. Nada em que quisesse pensar. Ultimamente não conseguia sequer esperar a cerveja gelar o suficiente. Desta vez fora prevenido. De um dia a outro gelando. Saboreou. Segurou firme a cabeça apoiando os cotovelos sobre a mesa. Não tinha ali dentro mais nada que pudesse escrever. Não havia mais nada que pudesse sentir. Nada para lembrar. Um borrão preto na memória. Uma fumaça cinza nos sentidos. Coração vazio, mãos vazias. Nem o gosto estranho da dor. Nada. Sozinho e preso o tempo todo dentro de si.
domingo, março 22, 2009
Le soleil
Puxou a carta do baralho com certa cerimônia. Laura notou as unhas roídas da mulher. Deu uma olhada rápida para suas próprias mãos. Um pouco cansadas. Esmalte claro. A marca da antiga aliança. Sol. Era uma boa mensagem. A mulher explicou-lhe o significado. Laura olhou novamente para as unhas roídas da mulher, mais uma carta. Morte. Era como se aquelas unhas mal feitas e com esmalte gasto a tirassem de perto dos astros e da intuição de cartomante. Laura imaginou-a longe do baralho. Ansiedade e expectativa. Roia as unhas tentando acalmar-se. Uma mulher. Esmalte vermelho sem as pontas.
Pagou e agradeceu. Antes de sair trocaram forte abraço. Pegou o ônibus de volta para casa. Sol e Morte já não lhe diziam mais grande coisa.
Pagou e agradeceu. Antes de sair trocaram forte abraço. Pegou o ônibus de volta para casa. Sol e Morte já não lhe diziam mais grande coisa.
sábado, março 21, 2009
Outono

Imagino que o outono seja uma boa época para se iniciar algo dessa natureza. Talvez seja a luz, as nuvens, o sopro frio do vento. Não sei, algo no outono faz-me pensar melhor.
Espero que escrever aqui seja como tomar um café. Detenho-me, pensando na vida, nas vidas, imaginando as histórias que passam nas calçadas enquanto olho da janela e mexo meu café.
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